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segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

003 - voo noturno - Saint-Exupéry

Voo Noturno (Antoine de Saint-Exupéry, 1931)
O piloto que arrisca a vida constantemente tem certo direito de sorrir da noção que, em geral, temos da “coragem”. Saint-Exupéry permitir-me-á citar uma carta sua, já antiga, do tempo em que ele sobrevoava a Mauritânia para assegurar o serviço Casablanca – Dacar:

“Não sei quando volto, tenho tanto trabalho de uns meses para cá: busca de camaradas perdidos, reparo de aviões caídos em territórios dissidentes e alguns correios para Dacar.

Acabo de me sair bem de uma pequena façanha: passei dois dias e duas noites com onze mouros e um mecânico para salvar um avião. Alarmes vários e graves. Ouvi pela primeira vez as balas por cima da minha cabeça. Vejo finalmente o que sou naquele ambiente: muito mais calmo que os mouros. Mas compreendi também o que sempre me causara espanto: por que Platão (ou Aristóteles?) coloca a coragem na última fila das virtudes. Não se compõe de sentimentos especialmente belos: um pouco de raiva, um pouco de vaidade, muita teimosia e um prazer desportivo trivial. Sobretudo a exaltação da nossa força física, que, contudo não pé para ali chamada. Cruzamos os braços sobre o peito descoberto e respiramos à vontade. É bastante agradável. Quando isso se sucede à noite, vem misturar-se, a tudo o mais, a sensação de termos cometido uma tremenda asneira. Nunca mais terei admiração por um homem que seja somente corajoso”.

Poderia por em epigrafe a esta citação um apotegma extraído do livro de Quinton (que estou longe de aprovar sempre): “Escondemos a valentia como o amor”; ou melhor ainda: “Os valentes escondem os seus atos do mesmo modo que as pessoas virtuosas escondem as esmolas que dão. Mascaram-nos ou arranjam desculpas para eles”.

É com conhecimento de causa que Saint-Exupéry fala, ao fazer a sua narrativa. O fato de enfrentar pessoalmente um perigo constante confere ao seu livro um sabor autêntico e inimitável. Escreveram-se várias narrativas de guerra ou de aventuras imaginárias em que o autor demonstrava um talento maleável, mas que fazem sorrir os verdadeiros aventureiros e combatentes que as leem. Esta narrativa, cujo valor literário também muito admiro, tem por outro lado o valor de um documento, e estas duas qualidades, inesperadamente reunidas, conferem a Voo Noturno sua importância excepcional.

Prefácio, por André Gide.


Mais apropriado que o otimismo ou o pessimismo é um certo patriotismo cósmico, pois ninguém jamais esteve na posição de julgar o mundo ao qual pertence antes mesmo de tentar compreendê-lo.

O patriota cósmico exerce um patriotismo místico, isto é, um patriotismo sem razão (apaixonado), pois se alguém ama seu país por uma razão, seja ela qual for, poderá acabar defendendo essa razão até mesmo contra seu país. Contudo, o patriota místico ama seu país e empenha-se para reformar suas imperfeições. Ele é um leal reformista.

Riviére, o personagem central da obra de Antoine de Saint-Exupéry intitulada Voo Noturno, demonstra lealdade militar ao parco legado de conhecimento de uma incipiente aviação e um apego apaixonado à sua missão (responsável por uma rede de correios aéreos) e à sua revolução (único defensor dos voos noturnos). Rivière é um leal reformista.

Nos primórdios da aviação, um voo noturno mais que desafiava as possibilidades de domínio da natureza: era uma aventura às cegas.

Esse domínio das sombras era temido nos círculos oficiais. Lançar uma tripulação, a duzentos quilômetros por hora, contra as tempestades, os nevoeiros e os obstáculos que a noite guarda escondidos no seu seio, parecia-lhes uma aventura tolerável para a aviação militar: parte-se de um campo em noite clara, bombardeia-se e volta-se ao mesmo campo. Mas os serviços regulares não teriam êxito de noite.

Voo Noturno relata a trágica aventura de um desses pioneiros do ar, provavelmente baseada num fato real: as horas de ansiedade vividas por ocasião do desaparecimento, na Cordilheira dos Andes, do piloto Guillaumet, amigo de Saint-Exupéry, ele mesmo também piloto.

A complexidade da missão de Rivière ia muito além das questões meramente técnicas, logísticas ou tecnológicas. Tratava-se de disciplinar, encorajar e motivar seus comandados (pilotos, rádio-telegrafistas, mecânicos, engenheiros...); implicava competir com outros meios de transporte que, embora mais lentos, nunca paravam, nem mesmo diante do mistério pérfido da noite; incluía fazer prevalecer sua solitária posição favorável aos voos noturnos. E colocar seus homens, como a si mesmo, a serviço da ação. E da realização. Rivière tem um propósito. Ele trabalha para reformar, realizar, legar. E, assim agindo, ele honra e mostra lealdade ao que recebeu por herança, e contribui para algo ainda melhor.

O escritor francês André Paul Guillaume Gide (premiado com o Nobel de Literatura de 1947), que assina o prefácio de Voo Noturno, referindo-se a Saint-Exupéry, diz o essencial em relação ao ponto que aqui interessa:

Estou-lhe especialmente grato por ter focalizado esta verdade paradoxal, que reputo de uma importância psicológica considerável: que a felicidade do homem não se encontra na liberdade, mas sim na aceitação de um dever.

Que dever?

Uma vez, junto de uma ponte em construção, debruçados sobre um ferido, um engenheiro disse a Rivière: "valerá esta ponte o preço de um rosto esmagado? Nem um só camponês teria aceito, para economizar um desvio pela ponte seguinte, a mutilação medonha deste rosto. E, no entanto, constroem-se pontes". O engenheiro acrescentara: "o interesse geral é formado de interesses particulares: não justifica mais coisa alguma". - "E, no entanto", retorquira-lhe mais tarde Rivière, "apesar de a vida humana não ter preço, agimos sempre como se qualquer coisa fosse mais valiosa que ela. Mas o quê?" Pensando na tripulação, Rivière sentiu um aperto no coração. A ação, mesmo a que consiste em construir uma ponte, destrói felicidades. Rivière já não podia deixar de perguntar:

"Em nome de quê?"

Em nome do legado. Em nome da memória de nossos pais. Em nome dos nossos filhos. Em nome da pátria, da nossa pátria comum, da humanidade... Assim responde, com outras palavras, o intrépido Rivière:

Amar, amar somente, é um beco sem saída! Rivière teve a noção obscura de um dever mais forte que o de amar. Ou talvez se tratasse igualmente de uma ternura, mas tão diferente das outras. Voltou-lhe à mente uma frase: " Trata-se de torná-los eternos...." Onde teria lido isso? " O que buscamos vai morrendo conosco" . Lembrou-se de um templo erguido em honra do deus do Sol pelos antigos incas do Peru. Pedras erguidas ao céu, em plena montanha. Que restaria, se elas não existissem, de uma civilização poderosa que pesava, com toda a carga de suas pedras, sobre o homem de nossos dias, como um remorso? Em nome de que dureza, ou de que estranho amor, o condutor de povos de outrora, obrigando as multidões a acarretar com aquele templo para o topo da montanha, lhes impôs assim o dever de erigir a sua eternidade?

Rivière se questionava. Estaria ele no lugar daquele que manda os homens construírem pontes e erguerem templos? Um tirano? Um dominador? Injusto, talvez?

Uma tripulação se perdeu, como talvez nenhuma outra se perderia desde então. Um ciclone incomum. Faltavam postos de observação... Lá se foram duas vidas.

Vitória... derrota... estas palavras não têm sentido algum. A vida está por debaixo dessas imagens e já prepara novas imagens. Uma vitória enfraquece um povo, uma derrota acorda outro. A derrota que Rivière sofreu é talvez uma promessa que torna mais próxima a verdadeira vitória.

Consolava-se, contudo, com a ideia de que a velhice e a morte, mais cruéis que ele próprio, destruiriam seus homens. Talvez existisse algo mais duradouro a ser salvo. Será que é para salvar essa parte do homem que Rivière trabalha? Não resta dúvida.

Sinopse, por wr.roxo


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